21 março 2011

A viagem de trem inesquecível (Estudo de caso)

Já falei muito de mim e dos meus rituais e agora vou contar a estória de uma outra pessoa. Ela me contou um dos seus piores rituais e me autorizou publicar aqui. Vamos chamá-la de Vanessa (nome fictício).
Vanessa começou seus rituais ainda criança mas não se lembra exatamente quando começou. Sabe que tinha pensamentos estranhos e que tinha que realizar certos rituais para que esses pensamentos à deixassem um pouco mais sossegada. Não eram vozes que mandavam ela fazer coisas que ela não queria, eram pensamentos mesmo, oriundos de sua própria mente e que, apesar de desafiar o lógico, faziam com que ela sentisse a necessidade de tocar em tudo o que via para que esses pensamentos não se tornassem realidade.
Ela começou tocando nos postes enquanto caminhava até a escola. Não eram todos, somente quando vinha um pensamento que sua mãe morreria ou poderia ter câncer é que ela tocava no 1o poste que via pelo caminho. Se o poste estava do outro lado da rua ela se via obrigada a atravessar a rua para tocar nesse poste. Quando ela tentava resistir, uma grande aflição atordoava sua mente. O ritmo do coração acelerava e junto dele os pensamentos de morte aceleravam também. Era como se ao se recusar a tocar no poste ela tivesse cortado o fio errado da bomba relógio que estava presa ao corpo de sua mãe e a contagem regressiva tivesse acelerado. Mais que depressa ela voltava para tocar naquele poste e a contagem regressiva parava.
Com o tempo ela foi tocando em outros objetos também além dos postes. Tocava no paralelepípedo da rua, voltava o caminho só para tocar na lombada que ela havia acabado de passar, tocava nas folhas e flores das árvores. Esse ritual também era realizado dentro de casa e ela sentia necessidade de tocar na vasilha com a comida do gato. Se fosse hoje Vanessa não sofreria tanto com a ração para gatos mas naquela época sua mãe costumava cozinhar sardinha e misturar ao pão para dar aos gatos e ela mergulhava seu dedo naquela mistura húmida e morna que os gatos comiam até tocar o fundo da tigela. De tanto fazer isso seus dedos ficavam com um aroma que atraia vários gatinhos (literalmente). Nas épocas de maior ansiedade ela começou a tocar na água do vaso sanitário. Procurava encostar o mínimo possível na água mas sentia a necessidade de pelo menos molhar a pontinha da unha na água.
Eu diria que isso é um paradoxo pois existe a obsessão com limpeza onde há uma preocupação excessiva com sujeira, germes ou contaminação e a pessoa tem compulsão por lavar as mãos ou não tocar em algo que acha que está contaminado. No caso de Vanessa ela lavava sim muito as mãos mas era por causa da compulsão que a obrigava a tocar em coisas sujas e não por medo de contaminação.
Uma vez quando ela voltava com sua mãe e seu irmão de trem para casa ela sentou na janela e viu a janela suja de vômito e sentiu uma necessidade enorme em tocar naquele vômito. Seu corpo lutava contra sua mente mas a proximidade com o vômito fazia com que ela, apesar se sentir enjoo, se sentisse mais tentada a tocá-lo. Após uma luta interior enorme ela, com muito esforço, levantou a mão e tocou bem de leve com a ponta de sua unha naquele vômito seco e desconhecido e tirou a mão rapidamente. Mas o TOC é astuto e maquiavélico e quanto mais corda vc der a ele maior será a forca que ele preparar para vc e antes  mesmo que ela pudesse respirar aliviada outro pensamento invadiu sua mente para que ela tocasse agora com a ponta de sua lingua.
Ela balançou a cabeça e torceu o nariz num gesto de nojo e pensou: isso eu não posso fazer. Mas e se alguém morrer por causa disso? E se EU morrer por tocar nesse vômito?
O tempo foi passando, sua luta foi aumentando até que finalmente sua estação chegou e sua mãe a puxou para descer do trem. Nesse ponto qualquer um sentiria-se aliviado por descer do trem sem tocar o vômito com sua lingua mas quem tem TOC não é qualquer um e ao invés do alívio Vanessa sentiu uma enorme ansiedade e sentimento de culpa. O trem fechou as portas e seguiu e Vanessa não conseguia andar, ela precisava de alguma forma anular o efeito daqueles pensamentos. Milhões de cosias lhe vinham a cabeça e ela foi seguindo sua mãe e seu irmão meio aos rituais mentais e compulsões que ela deixava pelo caminho.
Sua ansiedade foi passando..... seu coração foi voltando ao batimento normal e Vanessa descobriu que ninguém morre por uma crise de ansiedade, por mais que parece o contrário, e que graças a Deus sua mãe e seu irmão estão vivos até hoje :)
Essa estória me foi contata por uma amiga que tem TOC e eu, além de trocar seu nome, contei à minha maneira porém mantendo a veracidade. Esse episódio não foi o suficiente para que Vanessa eliminasse suas compulsões mas com certeza se alguém, nessa época a tivesse incentivado a lutar mais vezes contra seu TOC ela teria vencido essa ansiedade inicial que se tem quando não se consegue realizar um ritual e talvez estaria curada. Ela me disse que isso a ajudou, pelo menos, a lutar contra esses rituais bizarros e a não realizá-los. Mas porque lutar somente contra os bizarros como esse? Porque não lutar contra todos os rituais?
Essa é uma pergunta que não tem resposta certa, somente cada portador de TOC é capaz de dar essa resposta a si mesmo.

4 comentários:

  1. Sem dúvida foi um dos textos mais angustiastes que li aqui.
    Apesar do sofrimento,espero que todos consigam alcançar a paz, assim como a "Vanessa"

    ResponderExcluir
  2. Pois é anônimo, confesso que para mim que tenho TOC tb foi angustiante mas tb tenho que confessar que passei por situações parecidas
    Abraços

    ResponderExcluir
  3. Oi pessoal, eu sofria deste mal em cutucar o meu rosto ou de outra pessoa incontrolavelmente. Quando olhava para meu braço todo manchado, tinha vergonha de mim mesmo, as pessoas me olhavam assustadas porque no fundo de tudo pensam que é algo contagioso ou uma doença. E quer saber ?! por um lado essas pessoas estao certas: Ter uma doença ou infecçao generalizada, é horrível ser realista, mas muitas das vezes quando se passa a ter um TOC ou compulsividade, esquecemos de nós e do mundo. Se concentrando apenas numa sujeira que nao vai te proporcionar alívio e sim dores e vergonhas. EU JA PERDI MEU EMPREGO POR CAUSA DISSO, AS PESSOAS NAO AGUENTAVAM VER AS HORAS QUE PASSAVA ESPREMENDO ACNES.

    E sabe como venci esse toc? Porque quem manda na minha vida sou eu e nao esse "TOC" .. VOCE PRECISA AUTO DOMINAR TEU CEREBRO, precisa adaptar se a vida saudavel: caminhadas, alimentaçao e bom senso de humor sempre! Ja faz 1 ano que estou livre dessa fase de ficçao! TUDO DEPENDE DE VOCE E NAO DE PSIQUIATRA. VOCE É CAPAZ DE SUPERAR DESAFIOS, ASSIM COMO EU CONSEGUI :) BEIJOS

    ResponderExcluir
  4. Já sofri muito a noite, chegando até a chorar por causa de sentir necessidades obsessivas e pelo fato de eu ser criança, meus desejos e rituais não poderiam ser realizados. Hoje, tenho poucos (quase inúteis) rituais e hoje me sinto livre desses pensamentos. Em 2016 quero começar (já comecei) escrever tipo um diário de uma criança com TOC, pois mesmo que ele será independente, vejo que a sociedade ainda precisa levar essa doença a sério. Obrigado pelo texto e seu site ajudará como um estudo para mim.

    ResponderExcluir